segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Ultrapassando Fronteiras

Não é por acaso que as Cataratas do Iguaçu estão entre as sete maravilhas do mundo. Dentro de um Sítio do Patrimônio Natural da Humanidade declarado pela Unesco, a exuberante cachoeira despeja em média mais de 1,7 milhão de litros de água por segundo, do alto de quedas que chegam a 80 metros de altura (Figura 1 e 2). No centro de uma gigante área verde, as quedas d'água não são a única maravilha dessa região situada no extremo oeste do estado do Paraná. O Parque Nacional do Iguaçu reserva cerca de 187mil hectares de área protegida que somados aos quase 67mil ha do Parque Nacional Iguazú, na Argentina, cobrem uma grande área de proteção da Floresta Estacional Semidecidual ou a Selva Paranaense, como também é conhecida a Mata Atlântica na região (Figura 3). Minha pesquisa de doutorado, desenvolvida no Programa de Ciências Ambientais e Florestais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, trata justamente da cooperação entre os dois países para a proteção dessa área e felizmente tenho a oportunidade de executar esse trabalho em ambos os lados da fronteira.

Figura 1: Cataratas do Iguaçu.*

Figura 2: Cataratas do Iguaçu.*

Figura 3: Mata Atlântica no Parque Nacional do Iguaçu e Iguazú *

Em uma visita ao lado argentino tive a oportunidade de acompanhar os guarda-parques (Figura 4) em uma de suas "recorridas", ou seja, atividade que realizam mensalmente, em diferentes trechos do parque, visando a sua proteção contra as atividades ilegais, como a caça (Figura 5) e retirada de palmito (Figuras 6), semelhantes ao que ocorrem no Parque Nacional do Iguaçu. Saindo da sede administrativa localizada na cidade de Puerto Iguazú, soube que nosso destino seria a Ruta 101estrada que começa asfaltada à partir da Ruta 12*2, já em área do parque argentino, até chegar no aeroporto. Deste ponto, segue cerca de 35km como estrada de chão (muito enlamaçada em dia de chuva) (Figura 7), ainda em território protegido, até chegar a cidade de Comandante Andresito, fronteira com a cidade brasileira de Capanema. Próximo ao seu destino, o trecho de terra está sendo substituído por pedra onde é visível o alargamento do leito em torno de 3m (Figura 8). Segundo meus colegas argentinos, seu destino provável é o asfaltamento completo. Perguntei a opinião deles sobre a existência desta estrada, sua resposta é que ela deveria ser fechada pois é a principal entrada para o estabelecimento de atividades furtivas no parque e ocorrência de atropelamento de animais (Figura 9). Além disso, também relataram que a estrada é um caminho alternativo para outras atividades ilegais semelhantes à realidade brasileira de passagem de muamba vinda do Paraguai. É interessante ouvir isso de profissionais que tem uma formação de excelência e, ressalto, interdisciplinar, exclusivamente para a proteção da biodiversidade em seu país e financiados pelo Governo.

Figura 4: Guarda-parques argentinos.* 
(Foto tirada em outra saída de campo, em área denominada "Palmital").

Figura 5: Apreensão de materiais de caça no Parque Nacional Iguazú. 
(Imagem cedida pelo Parque - setor de guarda-parques)

Figura 6: Apreensão de palmito retirado ilegalmente do Parque Nacional do Iguazú
(Imagem cedida pelo Parque - setor de guarda-parques)

Figura 7: Trecho da Ruta 101.

Figura 8: Trecho da Ruta 101 sendo pavimentada com pedras.

Figura 9: Tamanduá atropelado em estrada que passa pelo Parque nacional do Iguazú.
(Imagem cedida pelo Parque - setor de guarda-parques)

Ao percorrer esse trecho da estrada pensei na semelhança com a polêmica Estrada do Colono, trecho irregular de 17 km que corta o parque brasileiro e liga Serranópolis do Iguaçu a Capanema. O histórico da origem e dos conflitos quanto à abertura dessa estrada está exposto em artigo escrito por André Alliana nesse mesmo blog (Não à reabertura da Estrada do Colono.), valendo uma consulta para melhor contextualização. O importante a dizer é que hoje a floresta já tomou posse desse espaço, fato que pode ser observado com uma visita a região (Figura 10, 11 e 12), agravando as consequências de sua abertura para a Mata Atlântica e todos os seres vivos que tem ali seu único refúgio. 

Figura 10: Vegetação no antigo leito da Estrada do Colono.*

 Figura 11: Marca de anta em árvore situada no antigo leito da Estrada do Colono.*

Figura 12: Pegada de felino no antigo leito da Estrada do Colono*

Este modelo de unidade de conservação da natureza, representado aqui, pelos Parques Nacionais do Iguaçu e Iguazú, dentro  de uma estratégia global de conservação da biodiversidade, traz relevantes benefícios não só ambientais, como também sociais e econômicos. Infelizmente, esse ganho coletivo é manipulado em prol de objetivos políticos e econômicos baseados numa concepção individualista onde os beneficiados concentram-se em um pequeno grupo de pessoas. Ações de aproximação da população do entorno com o Parque que tragam reais benefícios para ambos podem e devem ser estimuladas, mas pautadas em estudos prévios que projetem sua efetividade e sem prejuízo à conservação da biodiversidade e das leis existentes.

Um dado relevante apresentado pelo Centro Brasileiro de Estudos em Ecologia de Estrada (Universidade Federal de Lavras) é que 475 milhões por ano de animais morrem no país, vítimas de atropelamentos em estradas, um pouco mais de dois "Brasis" em termos de número de habitantes. As principais mortes estão entre pequenos roedores, anfíbios, sapos, cobras e mesmo mamíferos como onça, tamanduá bandeira, lobo guará, lontra, ariranha, dentre outros. Na Ruta 101 são mais frequentes os atropelamentos de pequenos mamíferos na parte de chão e de grandes mamíferos na parte asfaltada.
          
Refleti que a abertura da Estrada do Colono somada à Ruta 101, formaria uma rota, um arco de atividades furtivas na floresta, fato completamente incoerente com o principal objetivo de um parque nacional que é a proteção da biodiversidade. Algumas pessoas podem pensar "mas qual o problema de caçar um bichinho, de retirar uns palmitos?" ou "tem tanto bicho, alguns morrerem atropelados não vai fazer diferença?", na verdade existem vários problemas. Um deles é ético, todos os seres vivos tem direito a vida, esse é um dos princípios de conservação da natureza e que inclui eu, você e todos os outros seres. Outro, ecológico, refere-se à manutenção da vida na terra da forma que a gente conhece, quem já ouviu falar em cadeia alimentar, extinção de espécies, serviços ambientais? Então, quando algum ser vivo morre, especialmente em maior quantidade, afetará a alimentação de outros tantos, os eventos repetidos de morte levam à extinção de algumas espécies, gerando um efeito em cadeia. Ou seja, serão afetadas aquelas que estão sendo mortas pelo distúrbio externo (como a caça, o atropelamento ou a retirada de palmitos) e aquelas que dependem dessas para sobreviver.
         
Dentre essas espécies, está o ser humano, animal (sim, animal) que depende totalmente desses diversos outros seres para ter o conforto climático de suas casas, o ar oxigenado que entra em seus pulmões, a água fresca que hidrata o seu corpo, dentre tantos outros benefícios. A nossa contribuição nesse trabalho coletivo é também muito importante, o mínimo que podemos fazer é dar espaço para que esses tantos outros seres façam a deles. Portanto, essas áreas de conservação da natureza não foram criadas para serem nossa posse, elas servem a um bem maior e existem regras a serem cumpridas mesmo que não gostemos delas.

Essa visita reafirmou meu posicionamento, primeiramente, contra a abertura da Estrada do Colono pois não há uma razão clara e consistente dos objetivos e benefícios, sociais ou ambientais, que justifique a sua implementação. Pelo contrário, existem argumentos fortes dos seus potenciais prejuízos (Breve exposição desses argumentos: Porque a Estrada do Colono deve continuar para sempre fechada. e Dez motivos para a Estrada do Colono não passar.). E em segundo, quanto à importância de pensar a gestão dessas áreas a partir de uma visão integrada, ultrapassando as fronteiras, sejam elas políticas e/ou perceptivas/cognitivas.

Mudar de perspectiva ajuda a compreender melhor a realidade pessoal a partir do ponto de vista do outro. Conhecer melhor o parque argentino me mostrou que existem muito mais semelhanças do que diferenças em relação ao vizinho brasileiro. O potencial para o compartilhamento de seus pontos fortes, de cooperação na resolução de problemas é enorme e não deve ser ignorada. Em conjunto, os Parques Nacionais do Iguaçu e Iguazú constituem um importante patrimônio natural e uma fonte rica de aprendizado mútuo para a conservação da natureza na região. 


Figura 13: Pôr do Sol no Parque Nacional do Iguaçu visto do outro lado da fronteira (Argentina)*.

*Imagens do arquivo pessoal, jul., ago. e set./2013.
*2 Na data de publicação desse artigo (07/10/2013), morreu atropelada uma onça pintada na Ruta 12 (Otro yaguareté atropellado dentro del Parque), estrada asfaltada que conecta o centro de Puerto Iguazú à Ruta 101 e que também atravessa trecho do Parque Nacional Iguazú.

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