"Precisamos fazer uma nova revolução industrial que transforme nossos sistemas de produção e consumo drasticamente"
Em 2012 jornal O Globo publicou uma interessante entrevista com a
ambientalista Annie Leonard, do conhecido vídeo “A História das Coisas (Story of Stuff).
Nesta entrevista, Annie diz coisas que não podemos perder de vista, e
ainda mais quanto mais mergulhamos num cotidiano de consumismo excessivo
– e, muitas vezes, desnecessário:
“Há ainda milhões e milhões de pessoas no mundo que vivem na pobreza, que vão dormir com fome e que precisam de bens materiais básicos de saúde e educação. Para essas pessoas, é importante, essencial. Mas também há milhões de pessoas que têm mais do que realmente precisam. Essas pessoas associam status, felicidade e segurança à quantidade de bens que possuem. Felizmente, eu percebo que muita gente começa a pensar de forma diferente.“
Para quem não lembra, ou não assistiu A História das Coisas, trata-se deste excelente vídeo, logo abaixo:
Na entrevista, Annie fala sobre suas inspirações para o vídeo (que
depois virou livro), suas viagens pelo mundo e a enorme quantidade de
e-mails que ela recebe de braisleiros. Fala também sobre os desperdícios
gerados pelo nosso consumismo excessivo, educação ambiental,
sustentabilidade e também sobre felicidade.
Muito interessante a entrevista. Vale a pena conferir.
“Annie Leonard: A revolução do consumo e da felicidade”
De onde vem o papel que você segura neste momento? O quão sustentável
é a camiseta supostamente ecologicamente correta que acaba de comprar? A
mulher que respondeu a essas e a centenas de outras perguntas sobre
produção de bens de consumo se tornou uma celebridade. A ambientalista
americana Annie Leonard ficou mundialmente famosa pelo vídeo “A história
das coisas”, exibido milhões de vezes no YouTube. O curta ganhou uma
versão em livro — o homônimo “A história das coisas” (Editora Zahar). Em
ambos, Annie defende não só a sustentabilidade, mas a felicidade.
O Globo: Qual a sua inspiração para fazer o vídeo e escrever “A história das coisas”?
Annie Leonard: Quando era estudante universitária em
Nova York, me impressionava muito com as monumentais pilhas de lixo
depositadas nas ruas todos os dias. Um dia resolvi abrir os sacos para
ver o que as pessoas jogavam fora. Fiquei chocada ao descobrir que havia
muito material reutilizável, especialmente papel e metal. Então resolvi
ir ao depósito de lixo da cidade. Havia montanhas de móveis, roupas,
livros, comida. Isso despertou minha curiosidade sobre a função das
coisas em nossas vidas. De onde elas vem, para onde vão e como
administrar melhor sua produção e uso. Depois de formada, trabalhei para
ONGs ambientais e viajei pelo mundo.Vi os impactos ambiental, social e
de saúde ocultos das coisas que usamos e jogamos fora. Fiquei frustrada
que o custo real de todos os bens que consumimos não é explicitado nas
propagandas que nos encorajam a comprar coisas para nos assegurar
felicidade, sucesso e segurança. Eu queria promover uma discussão mais
honesta sobre padrões de produção e consumo.
O Globo: Como surgiu a ideia do filme e do livro?
Annie: Comecei fazendo um cartoon para descrever os
sistemas de ação e consumo. E deu certo! Depois criamos um vídeo de 20
minutos e o postamos em dezembro de 2007. Para minha surpresa, foi um
sucesso. Já foi exibido mais de 15 milhões de vezes, acessado em
praticamente todos os países do mundo. O livro “A história das coisas”
foi continuação desse trabalho.
O Globo: Você viajou por mais 40 países para pesquisar como
as coisas são produzidas e descartadas. O que descobriu? O que viu de
mais significativo?
Annie: A lição mais importante que aprendi é que há
muitos meios de criar um mundo melhor. Soluções economicamente viáveis
já existem, energia renovável à produção limpa e resíduos zero.
Precisamos fazer uma nova revolução industrial que transforme nossos
sistemas de produção e consumo drasticamente, reduza o gasto de energia e
água, elimine substâncias tóxicas, tornem os produtos mais duráveis.
Precisamos investir mais em ação, saúde e meio ambiente, e não no
acúmulo de coisas. Há muitos problemas ambientais para resolver, do caos
climático ao colapso dos recursos pesqueiros. Seria fácil ficar
deprimido se não tivéssemos tantas boas alternativas já disponíveis.
Felizmente, podemos começar a construir um futuro $agora. Em cada país
que visito vejo pessoas — de professores a pais, empresários e até mesmo
políticos — que trabalham para um futuro melhor. Isso me dá uma grande
esperança.
O Globo: Você já esteve no Brasil?
Annie: Ainda não, mas espero conhecer o Brasil. É um
dos países onde mais gente assistiu ao meu filme. Recebemos milhares de
e-mails de brasileiros, de pessoas que concordam com a mensagem de “A
história das coisas” e trabalham para um ambiente mais saudável,
sustentável e justo.
O Globo: Como podemos tornar nossa vida mais sustentável e feliz?
Annie: Pensando por nós mesmos. Estabelecendo nossa
própria medição de satisfação. Não deixando comerciais instilarem um
senso de inadequação que nos faça achar necessárias coisas das quais
realmente não precisamos. Conhecendo melhor nossos valores e visão de
uma vida feliz, e os pondo em prática.
O Globo: Como mudanças pessoais podem fazer diferença?
Annie: Escolhas responsáveis, como consumir o
necessário, cuidar do lixo e usar menos carro, nos fazem não só nos
sentirmos melhor quanto inspiram outras pessoas a fazer o mesmo, a levar
uma vida ambientalmente responsável. É claro, o impacto ambiental das
indústrias é maior, mas nosso grande potencial de mudança é a chance de
pressionar por novos padrões de produção e consumo. É preciso mudar a
mentalidade das pessoas sobre o lixo e o desperdício, fazê-las associar
isso a sua vida pessoal.
O Globo: Qual a melhor forma de educar as pessoas sobre meio ambiente?
Annie: Nossa economia, nossa saúde, nossas vidas
dependem de termos um ambiente saudável, mas a educação ambiental por
muitos anos tem sido segregada como uma área de estudo opcional.
Precisamos mudar isso. A consciência de nosso papel no meio ambiente
deve permear todas as áreas de educação, inclusive as profissionais,
como medicina ou negócios. Afinal, não existirão negócios, hospitais e
produtos num planeta morto.
O Globo: Como podemos conciliar nossa necessidade de coisas
como computadores, geladeiras etc. com o impacto ambiental que causam?
Annie: Eu não estou dizendo que devemos nos
desapegar de tudo. O que eu digo é que os bens de consumo precisam ser
saudáveis e seguros para o planeta, para quem os produz e para nós
mesmos. Por exemplo, hoje os telefones celulares têm metais tóxicos. E
também não duram nada. Somos estimulados a comprar sempre modelos novos,
em campanhas publicitárias milionárias, que estigmatizam os aparelhos
mais antigos. O ideal é que os aparelhos durassem mais, pudessem ser
atualizados e utilizassem tecnologias que facilitassem a reciclagem.
Hoje, nos EUA, o tempo de vida útil médio de um celular é de apenas um
ano. Se considerarmos a quantidade de energia e os materiais necessários
para produzir um celular, uma vida útil tão curta é uma verdadeira
tragédia. Eu não sou contra ter coisas. Eu apenas defendo um consumo
mais responsável. Defendo que as coisas sejam mais duráveis e possam ser
recicladas.
O Globo: O que você faz para reduzir seu consumo, reutilizar produtos e proteger os recursos naturais?
Annie: Eu compro menos coisas novas. Em parte porque
eu levo muito a sério a responsabilidade ecológica e também porque eu
não quero a minha casa entulhada de coisas. Há aparelhos, como
impressoras, por exemplo, que podem ser compartilhados com amigos.
Poderíamos compartilhar mais certos aparelhos e mesmo carros. DVDs,
livros, tudo isso pode ser compartilhado e trocado entre amigos.
O Globo: A publicidade tem um grande impacto em nossa vida. Como podemos lidar melhor com isso?
Annie: Eu tenho recebido muitos e-mails do Brasil
que expressam exatamente preocupação com isso. Muitos anúncios fomentam
uma sensação de ansiedade ou inadequação se você não tem um determinado
produto. Todos os dias ouvimos que nosso cabelo e nosso corpo poderiam
melhorar com esse ou aquele produto; que não temos um bom carro ou
celular. Temos mais coisas do que qualquer geração antes da nossa e nem
por isso somos mais felizes. Na verdade, somos mais infelizes do que as
gerações que nos antecederam. Por isso, é prioritário limitar a
publicidade para crianças, só estimula uma sensação permanente de
insatisfação. Também deveria haver leis mais rígidas em relação à
honestidade da informação que é veiculada. Precisamos encorajar o
pensamento crítico sobre a publicidade. Ter coisas demais não aumenta
nossa qualidade de vida.
O Globo: Como podemos passar de uma cultura acostumada a
jogar coisas fora a outra de lixo zero, que valorize produtos
não-tóxicos?
Annie: Não existe uma receita mágica. A solução está
em várias frentes simultâneas. Numa delas podemos recompensar cidades e
indústrias que reduzam o lixo e implementem taxas para grandes
poluidores. Na frente tecnológica é importante desenvolver produtos com
menos uso de materiais, que sejam mais duráveis e facilitem a
reciclagem. Na frente cultural, estimular valores que não sejam baseados
no consumo excessivo, investir em centros comunitários que compartilhem
cultura. Na frente econômica, é preciso parar de favorecer indústrias
poluidoras e incentivar a sustentabilidade. Há muitas estratégias e
desafios. Mas muitos problemas ecológicos não são realmente difíceis de
resolver. Já existem boas tecnologias e informação para fazer as coisas
mudarem. A falta de ação é indesculpável.
O Globo: O materialismo realmente nos faz infelizes?
Annie: A despeito de todas as que pregam que
consumir mais coisas nos torna mais felizes, um crescente número de
pesquisas tem mostrado o contrário. Uma orientação de vida altamente
materialista só aumenta a insegurança e a ansiedade. Eu não estou
dizendo que comprar um produto novo nunca nos faz felizes. Mas à medida
que consumimos mais, a satisfação vai diminuindo. Nosso primeiro ou
segundo casaco certamente tiveram um impacto maior do que o 12 ou 13.
Além disso, também nos preocupamos com os gastos. Obviamente, todas
essas considerações só valem para quem pode consumir. Claro que pessoas
que lutam para comprar comida a cada dia ficam muito felizes quando
podem comprar alguma coisa. Mas quando falo de consumismo, estou me
referindo a quem já tem o suficiente.
O Globo: Nossa sociedade está mesmo passando por um momento de mudança de paradigma? Como a economia global pode se adaptar?
Annie: Há ainda milhões e milhões de pessoas no
mundo que vivem na pobreza, que vão dormir com fome e que precisam de
bens materiais básicos de saúde e educação. Para essas pessoas, é
importante, essencial. Mas também há milhões de pessoas que têm mais do
que realmente precisam. Essas pessoas associam status, felicidade e
segurança à quantidade de bens que possuem. Felizmente, eu percebo que
muita gente começa a pensar de forma diferente.
Muitas pessoas começam a se sentir sufocadas no meio de um oceano de
coisas. Nossas casas estão cheias. Nossas garagens estão lotadas.
Passamos nosso tempo livre comprando, arrumando as muitas coisas que
compramos. Temos mais coisas, porém, menos amigos do que as gerações
anteriores. Estamos nos tornando socialmente isolados e solitários.
Por isso, muita gente começa a perceber que as coisas mais
importantes na nossa vida não são coisas materiais. Temos um excesso de
coisas e um déficit do que realmente importa: tempo para lazer, para
vida em comunidade, senso de significado em nossas vidas. Pessoas de
todos os países ricos do mundo começam a reconsiderar suas prioridades,
aprender a como viver melhor com menos, e a construir redes de
compartilhamento de coisas.
Você facilita o acesso a uma série de produtos que precisa apenas por
parte do tempo, como cortadores de grama, copiadoras, e não precisa
mais ser consumido pelo excesso. Já vemos mudanças na economia em busca
de um novo modelo. Negócios baseados em aluguel de carros, DVDs e mesmo
vestidos caros começam a florescer em toda parte. Para esse tipo de
negócio, que são uma forma de inovação, há muitas oportunidades. E é um
caminho de sucesso que não está baseado na destruição dos recursos do
planeta.
Eu sei que existe um longo caminho para uma economia global
sustentável. Há desafios. Mas esses desafios não são nada se comparados
com o desastre que nos espera se tentarmos continuar com o modelo atual
indefinidamente. A questão não é se a economia irá se adaptar. Mas como
ela fará isso. Simplesmente não podemos manter para sempre nosso ritmo
de consumo atual. Vamos mudar por vontade própria e estratégia ou devido
a um desastre. Eu prefiro que mudemos por estratégia e acho que já
começamos!
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